Parecer jurídico sobre a proposta de lei de Amnistia do Presidente da República

O Presidente da República, José Eduardo dos Santos, na condição de Titular do Poder Executivo, com a legitimidade conferida pela Constituição de 2010, enviou no mês de Julho de 2016, à Assembleia Nacional, uma proposta de lei de amnistia, após aprovação no Conselho de Ministro (órgão auxiliar do Titular do Poder Executivo).

Por Dr. William Tonet (*)

Por esta razão, há duas formas de se analisar esta controversa proposta de amnistia: uma mais literal e outra mais sistemática.

Vejamos:

a) Na realidade, o Presidente da República, neste sistema cesarista napoleónico, que inventaram na CRA (Constituição da República de Angola) tem o poder de iniciativa legislativa geral nos termos do artigo 120.º, i) e 167.º, n.º 4.

À sua iniciativa chama-se proposta de lei. É a interpretação literal da CRA.

b) Mas, poder-se-á entender que o Presidente não pode ter iniciativa legislativa na matéria de reserva absoluta de competência da Assembleia, mas o facto é que uma coisa é propor uma lei, outra é aprová-la.

c) Do ponto de vista genérico, num Estado de Direito e Democrático, um presidente que foge ao escrutínio do Parlamento, não pode ter iniciativa legislativa, como forma de preservação da independência dos órgãos de soberania.

A amnistia é uma questão de “Direitos, Liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos” (artigo 164.º, b) CRA) e que por isso só a Assembleia se devia pronunciar: ter a iniciativa e ser proponente. Esta interpretação é sistemática e de acordo com os Princípios do Estado Democrático de Direito, deve prevalecer, ainda que não exista nenhum artigo a dizê-lo explicitamente.

Pese o atipismo constitucional em vigor, não podemos deixar de reconhecer o encadeamento feito pelo legislador material quanto às normas de Direitos Fundamentais ou aos normativos de Direitos Fundamentais, alojados na Parte I da Constituição, no art.º 1.º, que trata das normas sobre o regime dos Direitos Fundamentais: “Angola é uma República soberana e independente”, aqui temos Angola como objecto, e adiante temos: “baseada na dignidade da pessoa humana”, que é o sujeito.

O n.º 2 do art.º 2.º CRA, garante que “A República de Angola promove e defende os direitos e liberdades fundamentais do homem, quer como individuo quer como membro de grupos sociais organizados”.

Este normativo é determinante e incontornável para interpretação da al.ª b) do art.º 21.º, que enquadra como tarefas fundamentais do Estado; “assegurar os direitos, liberdades e garantias fundamentais”. E logo noutra esquina temos a âncora do Título II, que consagra as normas sobre direitos fundamentais, e em “prima facie” enquadra os artigos 26.º, 27.º, 28.º, 56.º, 58.º, 62.º, 63.º, 64.º, n.º 6, 65.º e 67.º todos da CRA e ainda a al.ª b) do art.º164.º CRA que coloca como reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional, legislar sobre “ (…) direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos”.

O princípio conformador da Amnistia é a extinção da responsabilidade criminal, prevista no n.º 3 do art.º 125.º do Código Penal, cujo alcance deve ser para indistintos destinatários, face à positividade do direito, que é geral e abstracto, como advoga o jurista Rui Verde: “no rigor dos princípios uma amnistia deveria resultar de um pulsar cívico dos deputados, e não de uma acção do poder executivo, onde se poderá vislumbrar sempre uma intervenção demasiado directa no poder legislativo”.

Neste interim é mister recorrer ao que dizem J.J Gomes Canotilho e Vital Moreira, na obra Constituição da República Portuguesa Anotada, “é a dignidade como reconhecimento recíproco (mas não só) que está na base, por exemplo, de princípios jurídicos como o princípio de culpa e o princípio de ressocialização em matéria penal (cfr. AcsTC n.º 6/84 e 349/91), pág.199.

Desde logo, o texto da proposta remete-nos a interrogações relevantes, tais como, do esboço ter sido elaborado por deputados da Assembleia Nacional, em Setembro de 2015, visando, na altura, “engalanar” as comemorações dos 40 anos da Independência Nacional de Angola e, blindar o indulto presidencial expedido através do Decreto Presidencial n.º 173/15 de 15 de Setembro, “considerando que a independência Nacional é um marco histórico memorável para todos os angolanos, que ao longo de décadas de luta se entregaram ao combate para o seu alcance, bem como para manutenção de integridade territorial e da paz;

Tendo em conta, que a 11 de Novembro de 2015 celebrou-se o quadragésimo aniversário da Proclamação da Independência a nível nacional, vivida de modo abrangente e efusivo;

Recordando que no âmbito dessas celebrações e por ocasião do Dia do Herói Nacional, foi aprovado por acção do Decreto Presidencial n.º 173/15, de 15 de Setembro, o perdão através de indulto, contemplando os condenados em pena não superior a 12 anos de prisão que tivessem cumprido metade da pena;

Subsistindo o interesse de que este facto comemorativo se reflicta na ordem social estabelecida, de um modo geral, sem que se excluam os cidadãos privados de liberdade, de oportunidades de relevância para o desenvolvimento humano, e imbuídos no sentimento de proporcionar oportunidades sociais políticas e outras de interacção pessoal e familiar;

A Assembleia Nacional aprova, por mandato do Povo, nos termos das alíneas b) e g) do artigo 161.º e alínea d) do artigo 166.º, ambos, da Constituição da República de Angola” (…), lê-se no corpo geral do ante-projecto.

Com a leitura se constata uma colisão intencional e insanável, quanto à paternidade da presente proposta de lei. É da Assembleia Nacional ou do Presidente da República e Titular do Poder Executivo? É de Julho de 2016 ou Setembro de 2015?

Qualquer das respostas intriga.

Isto porque, se o proponente inicial do texto de Setembro de 2015 é a AN (Assembleia Nacional), a inversão da paternidade, em Julho de 2016, para a esfera do Titular do Poder Executivo indicia invasão deste, num outro órgão de soberania, como o legislativo, com “Reserva absoluta de competência legislativa” no domínio dos Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais do cidadão”, vide al.ª b) art.º 164.º CRA, onde se pode enquadrar o instituto da amnistia.

O descaso com a norma constitucional e legal transcende a elementar interpretação jurídica, ao estender a amnistia aos processos de cidadãos nacionais ou estrangeiros, indiciados ou acusados pelo cometimento de crimes, cujos processos estejam ainda em fase de julgamento, com molduras penais de até 12 anos de prisão.

“1. São amnistiados todos os crimes comuns puníveis com pena de prisão até 12 anos, cometidos por cidadãos nacionais ou estrangeiros até 11 de Novembro de 2015.

2. São ainda amnistiados todos os crimes militares, salvo os crimes dolosos cometidos com violência de que resultou a morte, previstos no n.º3 do artigo 18.º e no n.º 3 do artigo 19.º, ambos, da Lei n.º 4/94, de 8 de Janeiro”.

E abandonando o âmbito, o artigo 2.º (Perdão) representa uma verdadeira gincana normativa:

“1. Os agentes dos crimes não abrangidos pela presente amnistia, terão as suas penas perdoadas em ¼.

2. O disposto no número anterior é aplicável aos processos pendentes ou que venham a ser instaurados por factos ocorridos até 11 de Novembro de 2015

3. Não beneficiam de perdão previsto no número 1, os agentes que tenham beneficiado de comutação da pena do indulto previsto no Decreto Presidencial n.º 173/15, de 15 de Setembro”.

O n.º 2 do art.º 2 da presente proposta, anda em sentido contrário com o n.º 2 do art.º 67.º CRA: “presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

Se uma lei que deve ser geral e abstracta, num quadro amnistiável “apaga” crimes ainda em julgamento e sem sentença transitada em julgado, banaliza a solenidade da amnistia, que visa a extinção da punibilidade – indulgência principis -, justificável na atenuação do rigor exagerado das sanções penais, muitas vezes desproporcionais aos crimes praticados.”

Na actual proposta da Lei de Amnistia, subjazem razões subjectivas e objectivas que violam e violentam as mais básicas regras de uma sociedade igualitária e civilizada. E essas razões, escondidas não na letra da lei mas no seu espírito, poderão branquear muitos crimes de colarinho branco, ilibando-os de responsabilidade criminal e de poderem ser alvo de procedimentos criminais, contra abusos de poder cometidos e flagrantes violações da Constituição e da lei.

A proposta omite, intencionalmente, os crimes de peculato, art.º 313.º CP (Código penal -pena 8 à 12 anos); o de concussão, art.º 314.º CP (16 à 20 anos); os de peita, suborno e corrupção de empregado público, art.º318.º CP (pena 8 à 12 e medidas de segurança); bem como o de corrupção de juízes e jurados, art.º319.º CP (pena de 8 à 12 anos).

Não havendo razões objectivas, os crimes acima elencados, com actores identificados, vão com a subtileza partidocrata ser eliminados, por um servidor público, Titular do Poder Executivo, com a cumplicidade de deputados de uma bancada na Assembleia Nacional.

Mas à cautela a proposta vincula no art.º 3.º (excepções), os crimes não abrangidos:

a) Os crimes dolosos cometidos com violência ou ameaça a pessoas de que resultou a morte ou quando esta, não tendo ocorrido, houve o emprego de arma de fogo;

b) Os crimes de tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, punidos com pena superior à prevista na alínea a) do artigo 8.º da Lei n.º 3/99, de 6 de Agosto;

c) Os crimes de tráfico de pessoas e órgãos de seres humanos;

d) Os crimes previstos nos artigos 392.º a 395.º do Código Penal;

e) Os crimes de promoção e auxílio à imigração ilegal.

A proposta é, também, dúbia, quanto aos crimes militares, não se afastando da natureza castrense-inquisitória, do Tribunal Militar, na maioria das vezes, mesmo sem o desvendar de provas irrefutáveis, condena os réus, quando o visado é um superior hierárquico ou a sua vontade discricionária.

Argumentar-se-á que que o veredicto os culpou e condenou, em processo de julgamento, mas – em matéria de amnistia – não seria plausível levar em conta que a matéria de facto que originou muitas condenações foi demasiado débil ou mesmo inquisitória? Não seria uma forma de honrar a justiça, minimizando as dúvidas do julgamento que, como sabemos, deveriam beneficiar os réus (“in dubio pro reo”), mesmo se tratando de militares, uniformizados por lei especial?

A tríplice condição de Titular do Poder Executivo + Presidente da República + Presidente do partido no poder (no caso o MPLA), permite ao agente público, nas vestes e exercício do poder presidencial, a concentração de poderes, e, por via disso, a utilização da “coacção político-partidária”, aos deputados do seu partido, na altura de aprovação de uma lei.

O que não devia, tendo em conta, a avenida construída pelo acórdão n.º319/2013 do Tribunal Constitucional: “a este respeito faremos recurso não apenas aos princípios da hermenêutica jurídica mas também a alguns dos princípios da interpretação da constituição, nomeadamente, o princípio da unidade da constituição, que diz que a interpretação da constituição deve ser feita tendo em consideração a conexão e unidade sistemática dos princípios que estão distribuídos ao longo da lei fundamental e no quadro da unidade de sentido político-ideológico desta lei; o princípio do efeito integrador, que estabelece que na resolução de problemas jurídico-constitucionais se deve dar primazia aos pontos de vista ou critérios que favoreçam a unidade política do diploma e, finalmente, ao princípio da conformidade funcional que na concretização da constituição não se deve permitir a alteração de funções constitucionalmente previstas entre os órgãos que exercem o poder político” (pag.ª 7, acórdão 319/2013-TCA – Tribunal Constitucional de Angola).

Em toda a extensão é uma análise sistemática do Tribunal Constitucional, que, na tentativa de blindar o órgão Titular do Poder Executivo, confirma, apesar de tudo, que os Direitos e garantias fundamentais, caem na alçada do poder legislativo.

Mas ainda assim, podemos analisar a conclusão do Tribunal Constitucional: “nos termos da Constituição da República de Angola, o Executivo não é politicamente responsável perante o Parlamento, nem há uma relação de subordinação política do mesmo ao Legislativo” (pág.ª 9 acórdão 319/2013-TCA).

Por maioria de razão o inverso, também deve ser verdadeiro, logo, esta proposta do Titular do Poder Executivo, de amnistia, surge para subordinar o poder legislativo, na bota do Presidente da República, transportando-nos para o tempo de partido único em que este era ao mesmo tempo, o Presidente da Assembleia do Povo.

No actual contexto de atipismo constitucional, por muito que custe a determinados actores políticos e jurídicos, o art.º 109.º CRA (“é eleito Presidente da República e chefe do Executivo o cabeça de lista, pelo círculo nacional, do partido político ou coligação de partidos políticos mais votado no quadro das eleições gerais…”), coloca Eduardo dos Santos, com poderes capazes de ofenderem a soberania de outros órgãos e acima do previsto constitucionalmente: presidente do MPLA + Presidente da República + Titular do Poder Executivo + Chefe do Governo + Comandante em chefe das Forças Armadas (colocando o seu partido político, com domínio exclusivo das forças armadas e das armas. É um partido armado), esta concentração impõe a revogação da constituição, para a ajustar.

Diante deste burilado contexto, só um terramoto poderia levar à não aprovação de uma proposta com chancela prévia do Titular do Poder Executivo.

Parecendo haver magnanimidade dos proponentes ela encerra muitas contradições, pese o alojado nos artigos 4.º (Condição resolutiva)

1. O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não reincidir nem praticar infracção dolosa a que corresponda pena de prisão superior a um ano, nos três anos subsequentes à data da entrada em vigor da presente lei ou à data em que vier a terminar o cumprimento da pena ou durante o cumprimento desta;

2. Tratando-se de crime patrimonial em que haja condenação por indemnização, o benefício da amnistia ou perdão, é concedido mediante reparação ao lesado pelo período de até um ano.

Infelizmente, esta amnistia uma vez mais vai ilibar os abusos de poder, cometidos nos últimos tempos contra os amantes da democracia e que acreditaram na Constituição, que viram o seu maior património; a liberdade violada, com as prisões, espancamentos e assassinatos ilegais, que mereceriam processos e as competentes indemnizações. Daí, também, a cautela do Tribunal Supremo, não evoluir para a decisão final dos recursos interpostos.

O art.º 5.º diz: “a amnistia prevista na presente lei não extingue a responsabilidade civil, nem a disciplinar emergente de factos amnistiados e o prazo da propositura da acção de indemnização no tribunal competente por perdas e danos conta-se a partir da sua entrada em vigor”.

Mas a cereja no cimo do bolo da proposta, está no art.º 6.º (Objectos apreendidos) onde os proponentes, veladamente, assumem o roubo dos bens e material apreendido, pelos agentes dos Serviços de Investigação Criminal e da Procuradoria Geral da República, principalmente, entre outros, nos casos de Arão Tempo, Marcos Mavungo, José Julino Kalupeteka e os jovens presos políticos 15+2, que não conseguem reaver, faz mais de um ano, os seus pertences, incluindo documentos pessoais.

“São declarados perdidos a favor do Estado os objectos de crime que tiverem sido apreendidos, quando pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, oferecerem sério risco de serem utilizados no cometimento de novas infracções, bem como os frutos produzidos pela prática de tais crimes”.

Num inquérito ou processo criminal é muito comum objectos serem apreendidos, como um carro que foi furtado, jóias roubadas, além do objecto com o qual pode ter sido praticado o crime (uma faca, um revolver, etc….). Esses objectos, no final do processo devem ser restituídos aos donos ou a quem tenha legítimo direito sobre eles. Para isso, surge o pedido e o incidente de restituição de coisa apreendida, como vem articulado na Lei n.º 22/92 de 4 de Setembro, no art.º 27.º (Restituição de objectos apreendidos), não podendo aleatoriamente evocar o art.º 30.º da citada lei, indiciando “ab initium”, uma sentença adesão contrariada pelo art.º 158.º do Código de Processo Civil, dever de fundamentação.

Na eventualidade meramente académica de considerarmos que Angola é um Estado de Direito, quem não pode nem quer prestar contas a um órgão de soberania, por maioria de razão, não poderia (não deveria) apresentar uma proposta de lei (pese o enquadramento difuso do n.º4 do art.º 167.º CRA), ainda que a decisão de aprovar seja de outro órgão, no caso a Assembleia Nacional.

Diz a al.ªg) do art.º 161.º (Competência política e legislativa), competir a Assembleia Nacional, “conceder amnistias e perdões genéricos”, enquanto a al.ª n) do art.119.º CRA, concede discricionariedade ao Presidente da República da concessão do indulto e comutação de penas.

Ademais, a proposta vinda do Conselho de Ministro, órgão auxiliar do Presidente da República (art.º 134.º CRA), em Julho de 2016, não apresenta como preconiza o n.º 1 do art.º 126.º, “razões de urgência e relevância, tal medida se mostrar necessária à defesa do interesse público”.

Por definição, uma amnistia é algo de positivo, mas esta parece ser uma espécie de lavagem de regime à beira do precipício, defende Rui Verde.

(*) Doutorando em Direito Constitucional e Penal

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